A rotina das agentes de saúde que vão até a região para convencer os usuários de drogas a tratar o vício
FONTE; REVISTA ÉPOCA
por Eduardo Duarte Zanelato • Fotos Apart Studio
PERSISTÊNCIA
Em turnos de 12 horas, Lucélia (à esq.) e Roseli encaminham dependentes para tratamento – e não esmorecem diante das recaídas
Você procurou sua mãe?” A agente de saúde Roseli da Silva quer saber como andam as relações familiares de Edna*, uma usuária de crack. Sob o efeito da droga, Edna pede para ser encaminhada – pela quinta vez em dois anos – para um tratamento contra a dependência. “Eu não”, diz a moça. “Quero que ela morra. Minha mãe está aqui, ó”, afirma, apontando para Roseli. Apesar do desconforto, é uma vitória ser tratada como mãe por quem vive, feito zumbi, pelos arredores da Estação da Luz.
Um ano e oito meses atrás, Roseli e a colega Lucélia de Brito Gomes foram recebidas com desconfiança na região da Cracolândia. Ambas fazem parte de um grupo de 90 profissionais que atua oferecendo tratamento a esse público, seja para cuidar de um corte na perna ou combater o vício. E, entre as agentes e o crack, a maioria acaba preferindo as pedras. Após seis internações, Edna ainda não se livrou delas. Mesmo assim, a dupla não desiste. “Todos podem voltar a ser o que eram”, diz Lucélia.
Sempre em dupla, as agentes passam 12 horas seguidas no batente, em dias alternados, zelando pela saúde de pessoas que, vitimadas pela dependência química, já perderam as noções básicas de higiene. Seu trabalho inclui cuidar para que ferimentos não infeccionem, conferir se a tosse em excesso se deve ao uso de crack ou se já é sintoma de tuberculose e orientar portadores de HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis a não compartilhar cachimbos nem se relacionar sem proteção. Quando necessário, cabe a elas encaminhar os usuários para tomar banho num dos cinco espaços de convivência mantidos no centro pela Secretaria de Assistência Social – conhecidos como Desde agosto de 2009, esses agentes, coordenados por 20 enfermeiros, têm transformado a maneira como o poder público lida com os dependentes na Cracolândia. Segundo a prefeitura, cerca de 500 pessoas perambulam por ali, agitados entre uma pedra e outra, embora a sensação seja de uma população muito maior. Roseli e Lucélia fazem parte da Ação Integrada Centro Legal (confira a abrangência do programa no mapa ao lado), esforço conjunto das secretarias municipais de Saúde e Assistência Social, polícias Civil e Militar e Guarda Civil Metropolitana para demover os “noias” do vício. A transição para um modelo menos agressivo de enfrentamento é lenta e os resultados são tímidos. Desde o início do trabalho, os 90 agentes fizeram 134 mil abordagens, que resultaram em 8,5 mil encaminhamentos médicos e mais de 1.100 internações para tratar a dependência. Não é possível dizer quantas pessoas recaíram.
OS AGENTES DA AÇÃO INTEGRADA CENTRO LEGAL
JÁ FIZERAM 134 MIL ABORDAGENS, QUE RESULTARAM EM
MAIS DE MIL INTERNAÇÕES
Roseli e Lucélia não se apegam aos números. Aprenderam a respeitar o tempo de cada um. Cada indivíduo que se livra do vício é motivo para comemoração. Elas descobriram também que a sujeira comum aos usuários esconde pessoas muito diferentes. “Tem gente de todo tipo, uns com um padrão cultural altíssimo e outros numa situação de exclusão muito grande”, diz Rosângela Elias, coordenadora de saúde mental, álcool e drogas da Secretaria Municipal de Saúde.
O contato das agentes com essa realidade tem início às 10h. Depois de encontrar os colegas de trabalho num galpão em Santa Cecília, seguem em Kombis para o trabalho de campo. O ponto de partida é o Largo Sagrado Coração de Jesus, no miolo da Cracolândia. Ali já dá para ter ideia do que as aguarda. A principal aglomeração de usuários fica a menos de 50 metros, distância suficiente para notar o grau de inquietação dos dependentes e a tensão que paira no ambiente. Vestidas com jalecos azul-celeste, elas saem às ruas com os ouvidos disponíveis a quem quer que se aproxime. Ignoram o uso de droga a céu aberto, o comércio das pedras de crack bem ao lado ou o forte cheiro do lixo não recolhido. É verdade que elas preferem não ficar por perto quando a força policial decide dispersar a massa de usuários. Quando o clima é amistoso, elas se aproximam de pequenos grupos de dependentes. A maioria aceita conversas rápidas. “Assim que falamos com eles, fica muito claro quanto são carentes”, diz Roseli. “Quando conquistamos a confiança, viramos seus amigos.”
“QUANDO VEJO UM PACIENTE RECAIR, PERCEBO
COMO O QUE FAZEMOS É UM TRABALHO DE
FORMIGUINHA”, DIZ ROSELI
Se os pacientes reclamam de dor, elas oferecem tratamento médico. Se não reclamam, mas aparentam algum problema, também oferecem ajuda. Quem aceita é encaminhado a ambulatórios ou unidades de saúde da região. Entre os diagnósticos mais comuns, quadros severos de tuberculose, escabiose (sarna) ou hepatite. “Primeiro eles nos procuram para tratar da saúde. Mas aproveitamos para falar do tratamento para a dependência”, afirma Roseli.
Além de respeitar o tempo de cada paciente, é preciso lidar com a lentidão do sistema público de saúde. Logo que o usuário aceita o tratamento, um carro deve levá-lo ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), na Sé, ou à Assistência Médica Ambulatorial (AMA) Boracea, também na região central. O transporte demora, os motoristas se perdem, há uma fila de outros colegas pedindo carro para seus encaminhamentos, e o trânsito não colabora. Chegar já é uma vitória, mas então é preciso aguardar a vez. As agentes “furam” a fila de espera para que os usuários não desistam. Enquanto não são atendidos, precisam ser acalmados. Geralmente, estão sob efeito da droga, o que os deixa impacientes.
Guilherme, de 35 anos, chegou ao Caps AD falando alto, com as mãos tremendo e reclamando da demora. Só se acalmou quando entrou no banho. “Na Cracolândia, não me importo de ficar sujo, como todo mundo, mas aqui é diferente”, dizia. Lucélia e Roseli se mantêm serenas: rompantes de histeria fazem parte de sua rotina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
contato : (11) 95197.2464
email : edsonxavier.radio@globo.com